“Chinese Bridge Internacional 2016”

 

Portugal obtém a melhor colocação de sempre e é condecorado com o Prémio de “Melhor Performance Artística”

 

“我喜欢出发,喜欢离开            

喜欢一生中都有新的梦想

千山万水随意行去  

不管星辰指引的是什么方向.”   

(“我”, 席慕容)

“Eu gosto de ir, gosto de partir.

Gosto de todos os novos sonhos que a vida abarca

De me sentir livre para percorrer milhares de milhas

Independentemente do rumo que a estrela marca.”

(“Eu”, Xí Mùróng)

 

Comecei a redigir este texto ainda a bordo do LH0729, que me levava de Shanghai para Frankfurt, onde aí tomaria, finalmente, o avião de regresso para Portugal. Fiz mesmo questão de o começar a escrever lá no alto, acima das nuvens, fazendo jus ao meu nome chinês – 高梦飞 (Gao Mengfei – que significa “sonhar e voar alto”), porque bem pude ver como a premissa deste nome me levou à participação na 15.ª edição do famoso concurso internacional Chinese Bridge – Chinese Language Proficency Competition for Foreign College Students. O efeito que produziu em mim foi de uma ampliação pessoal nunca antes experienciada. A verdade é que o 15.º Chinese Bridge tinha ultrapassado o seu próprio horizonte concetual de simples concurso de língua, cultura e história chinesa, e a dor trazida pela despedida dos amigos fazia vislumbrar o verdadeiro significado da palavra “prémio”. Mas apesar do sabor amargo de ter ficado a dois lugares de poder levar Portugal à fase seguinte, quiseram os deuses que o nosso país saísse da China, ainda assim, condecorado com o prémio de “Outstanding Performance”.

Iniciado em 2002, o Chinese Bridge é um grande concurso internacional de língua chinesa que decorre anualmente na cidade de Changsha, na província de Hunan, no sul da China Central. O concurso reúne os campeões nacionais de mandarim de cada país do Mundo (determinados nas pré-eliminatórias organizadas nos respetivos países), tendo estes a função de representarem o seu país nesta competição repleta de desafios diversificados, cujo grau de exigência se intensifica severamente com o progredir das etapas. Na China, o Chinese Bridge goza de uma fama e importância consideráveis. O concurso é, sobretudo, um programa de entretenimento televisivo, emitido pela Hunan TV, que tanto tem de programa cultural e game show, como de reality show, sendo patrocinado pela Hanban/Sede do Instituto Confúcio (instituição pública afiliada ao Ministério Chinês da Educação que promove o ensino da língua e cultura Chinesa no mundo). A primeira vez que ouvi falar do concurso foi em 2011, mas só agora, em 2016, é que a oportunidade de participar surgiu inesperadamente, quando, como aluno de Chinês Turístico e Comercial na Universidade do Minho, a Prof. Fang Xianghong, do Instituto Confúcio da dita Universidade, me incitou a participar na pré-eliminatória nacional, que decorreria no dia 30 de Abril, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Depois de cerca de mês e meio de preparação, acabaria por sair vencedor na categoria de alunos universitários e carregava agora a responsabilidade de fazer representar na China o estandarte da nação portuguesa. Iniciava-se, assim, um desafio que, permitam-me dizê-lo, ultrapassava a realidade dos estudantes de mandarim em Portugal. Os meus outros colegas que se sagraram campeões nacionais em edições anteriores e que estiveram na China representando Portugal entenderão perfeitamente o que quero dizer.

Ora, assim sendo, como é que nos tentamos colocar ao nível de algo que nos ultrapassa? É muito fácil, acreditem, as circunstâncias induzirem-nos ao consolo do espirito desportivo. Mas o conceito de “vitória” é lato, e aí a demarcação da nossa presença é o antídoto quase esquecido. O carisma faz diferença, mas é vulpino. Primeiro, porque é fácil cair-se no ridículo de o comercializar e acabar-se vítima do artificialismo; segundo, ele deve ser o esteio trabalhado da nossa comunicação. Algo que noto em vários concorrentes promissores deste concurso é a sua assustadora fluência em mandarim, mas falta ou desequilíbrio de expressividade. Relembro o que aconteceu no último Chinese Bridge, em que os últimos finalistas se viram no meio de um desafio final que, provavelmente, será um tanto intimidador para vários de nós: uma peça de teatro onde tinham de contracenar com um ator profissional que conduzia a cena ao lançar-lhes temas para que estes improvisassem em mandarim. Não foi a enorme fluência em mandarim do novo zelandês Mai Kaiping que o destacou nesse desafio final, mas sim a forma como sentiu e exteriorizou o seu discurso (ainda que com algum esforço por naturalmente não ser um ator). Trabalhar a expressividade foi, por isso, um dos meus principais alvos. A expressividade é inquestionavelmente um íman para a compreensão e atenção do ouvinte.

Os dois meses que antecederam o concurso foram extenuantes. A partir do momento em que fui sagrado representante de Portugal no Chinese Bridge não me desassemelhei muito de um atleta preparando-se para as olimpíadas. Tanto eu como a Prof. Fang, que se tornou a minha incansável tutora, pouquíssimo descanso tivemos. A burocracia parecia infindável e o número de performances e materiais a preparar pareciam excessivos para o pouco tempo que restava. Felizmente, tudo acaba pronto com a dedicação diária, porém demasiado sacrificatória para se conseguir resultados consideráveis (ainda bem que os chineses reconhecem e condecoram devidamente o nosso empenho. Não estava habituado a tal.).  

Chinese Bridge levou-me a pisar a China pela primeira vez. A infestação diária dos caracteres chineses em cada esquina e objeto, a voracidade linguística com que os chineses se expressam (sim, porque um taxista, por exemplo, não fala como os atores que emprestam a voz para o teste de audição do exame HSK), as galáxias de palavras e formas gramaticais nunca antes sondadas, a falta de vocabulário para resolver questões problemáticas (como o episódio insólito da minha mala de porão se ter perdido mal cheguei ao aeroporto de Pequim – praxe!), tudo me fez perceber que já deveria ter estado ali ainda como aluno de licenciatura. Era como se o efeito reality show do concurso já estivesse a começar ali, no backstage do dia-a-dia. Nunca tinha viajado para a Ásia. Pequim era o expoente do choque cultural, nas suas cores, cheiros, melodias e sensações. Pequim era um colosso, e eu ali, minúsculo, único na sua nacionalidade e sem mala… 

Aos poucos, os concorrentes, vindos de cada canto do Mundo, aterravam neste colosso cultural da China. A curiosidade e a necessidade de comunicar, fazendo uso do mandarim ou do inglês, fez brotar as amizades. “De onde vens?” – “De Portugal” – e impressionava-me o reconhecimento carinhoso que me dedicavam após pronunciar o nome do meu país. Havia qualquer coisa de especial naquela reação que não se repetia com vários outros concorrentes quando diziam de onde vinham. E percebi que Portugal era acarinhado. E percebi que lhes transmitia uma aura especial. Infelizmente, dividiram-nos por continentes (por questão de melhor logística), o que dificultou o contacto com concorrentes fora do núcleo europeu. Antes de seguirmos para Changsha (numa viagem de avião atribulada), haveríamos de ficar em Pequim por dois dias e meio, onde além de termos visitado os locais ícones da cidade, também iniciamos, sem demora, os preparativos para a primeira etapa do concurso: o discurso. Os tutores chineses foram rigorosos na supervisão e melhoria dos nossos discursos e elocução. Quando um deles viu que o meu discurso se baseava numa exposição bilingue (chinês-português) de poemas de Li Bai e Cao Cao, e que o portuguezito era capaz de os recitar de cor e com emoção, rapidamente comentou: “O teu conhecimento sobre literatura clássica chinesa coloca-te em vantagem.”. Mas a verdade é que, já em pleno palco e perante os três jurados, esse “conhecimento” não me salvou da traição do relógio que contava o tempo limite do nosso discurso. Tantas vezes reformatado, tantas vezes ensaiado, as palavras encaixavam-se perfeitamente nos 90 segundos requeridos, ficando bem aquém do limite de tempo, e por isso, a vivacidade com que expressava o meu discurso foi surpreendida pelo som infernal da contagem decrescente dos últimos dez segundos quando entrava no último parágrafo. A minha teimosia perfecionista em dizer pelo menos uma última frase importante, que jamais haveria de completar atempadamente, fez-me escorregar vertiginosamente. No final, o tempo ultrapassado, a frase dita (a muito custo) e o arrependimento. Restava-me recompensar a asneira respondendo corretamente a uma pergunta do júri e vendendo a alma na demonstração de talento chinês: interpretar o poema “将进酒” (“Trazei o vinho!”) de Li Bai – em apenas 90 segundos.

Inteiramente familiarizado com o seu contexto histórico-biográfico, significado, melodia, tempo, clímax e estado de espirito dualista, senti-me declamando as palavras otimistas e melancólicas de Li Bai como nunca antes o fizera, tentando embebedar o palco e o coração da plateia com a embriaguez de um sujeito poético que se tornara tão querido para mim. No fim, também ele se tornou aparentemente querido e marcante para todos. Aliás, entendes que conquistas o coração dos nativos quando um deles, já bêbado e abraçado a ti, na véspera da partida, te pede para que lhe recites o poema uma última vez e te agradece tal homenagem cultural. E aí sabes que, venha o que vier, já és um vencedor. Mas mais tarde, para superação do que era expectado, e quando eu achava que mais uma vez Portugal não iria longe na competição, quis a sorte oficializar essa conquista condecorando-me com o prémio de “Melhor Performance Artística”, juntamente com uma concorrente norte-americana. Naquele instante, assaltou-me a recordação de todas as horas de processo de construção, de todos os sacrifícios, de todos os amigos e professores envolvidos, e o sentimento de gratidão disparou na direção de todos os pontos cardeais.

A cotação conjunta do discurso, pergunta do júri e performance atribuir-me-ia 60,72 pontos numa escala de 70. Isso colocou-me em 14.º lugar num ranking de 45 candidatos europeus. Os restantes 30 pontos seriam decididos num quiz de cultura geral sobre a China, sendo que cada resposta certa valia 2 pontos. Os 7 primeiros a atingirem os 100 pontos seriam apurados para a fase seguinte. Eu precisava de responder corretamente a 20 perguntas para ser apurado. Foi então que experimentei o sabor amargo de ter ficado a dois lugares da vitória. Apesar de ter respondido corretamente a todas as perguntas (o que me fez subir no ranking, porque aparentemente alguns dos candidatos que estavam na minha frente começavam a errar perguntas), no momento em que faltava apenas apurar os dois últimos candidatos, eu atingi os 100 pontos, o computador congratulou-me, mas, infelizmente, mais cinco candidatos atingiram os 100 pontos ao mesmo tempo que eu. Desses cinco apenas dois passavam e eu estava no 9.º lugar. Ora, se em vez de 60.72 pontos eu tivesse obtido, pelo menos, 61 pontos, certamente estaria fazendo parte dos 7 melhores da Europa neste momento.

Mais do que um concurso que coloca severamente à prova as nossas capacidades de comunicação em mandarim, o Chinese Bridge é, sobretudo, uma ponte de partilha intercultural em grande escala. Acabamos por conhecer pelo menos uma pessoa de cada país do Mundo e, afastados do conforto das nossas raízes, sentimo-nos internacionais. Recebemos e damos, aprendemos e ensinamos. Procuramos atingir a plenitude do carpe diem. A nossa essência e consciência de Ser Humano reprograma-se. Mas também é preciso advertências sobre a competição e nesse aspeto dou voz à minha honestidade. Para começar, quer se goste ou não, o Chinese Bridge abarca uma importância que nem eu próprio fazia ideia quando concorri. Por exemplo, o título de vencedor no curriculum, nem que seja apenas de campeão nacional, faz diferença na procura de um emprego na China. Depois, o próprio concurso fornece bolsas de estudo na China para todos os concorrentes, cujo período de tempo é determinado pelo progresso no concurso (mínimo de um semestre). Mas se quisermos que venha o dia em que um português vença o Chinese Bridge ou que pelo menos vá longe nas suas etapas, então teremos de inovar, ainda mais, os métodos de ensino de mandarim em Portugal e os ambiciosos deverão efetuar um árduo trabalho de casa. Mas é preciso, essencialmente, proporcionarem-se mais oportunidades de estudo na China ainda durante o período de licenciatura. Lá, como um Daniel atirado à cova dos leões, é que nos superamos, profissionalizamos, e, quiçá, nos tornamos a ameaça de um concurso destes.

Restam-me os meus maiores agradecimentos a imensa gente que me apoiou. Dirijo agradecimentos especiais aos membros do Instituto Confúcio da Universidade do Minho, às professoras Fang Xianghong (a quem esta vitória se deve bastante) e Zhang Yan, ao meu amigo Mauro Marques, jornalista do “Diário do Povo” em Pequim, e ao Pedro Martins, Gabriel da Silva e Cátia Oliveira, pela colaboração indispensável na construção dos presentes para o 15.º aniversário do concurso. Recordo e agradeço, por fim, o carinho especial, as palavras de apreço e apoio que recebi de imensos concorrentes europeus que conheci, enviando um grande abraço para a Louisa, Chiara, Jaime, Emil, Knut, Jorinde, Kimberley, Tsvetomir, Thomas, entre outros.

Samuel Gomes (2016)